quarta-feira, 21 de maio de 2014

Múltiplo...múltiplo...

Um rapapé respeitoso
CARLO EMILIO GADDA 


A pequena casa de persianas verdes é abraçada por uma guarda de ciprestes e dista não menos de 400 metros da Villa Guidi e uns cem da avenida. O bonde número 13, depois das 9h, passa de hora em hora, até a meia-noite. Da margem oposta do rio, avista-se a breve série de janelinhas iluminadas lançando na solidão e no escuro da avenida um sinal do mundo ainda acordado, ainda vigilante: vêem-se as janelinhas correrem ao longo do negro pavoroso que as tílias coagularam no paredão. Do alto, a cidade, as torres de madrepérola, as luzes de cada ponte parecem amigas e próximas: um grito poderia atingir as ameias das torres, descer às mesinhas dos cafés: até as pessoas que estão se deleitando com os sorvetes. Não, nenhum grito seria ouvido nos cafés: nenhum grito que saísse da pequena casa de persianas verdes, a cem metros da tenebrosa avenida. Nem mesmo o motorneiro e o cobrador do bonde número 13 poderiam ouvi-lo, já que a geringonça rodando sobre os trilhos, saltitando a cada articulação, faz tamanho barulho que os deixa surdos, obriga-os a conversar em voz alta. E, depois, mal o bonde acaba de passar, tudo fica escuro de novo: e os grilos são os únicos donos da noite, das colinas. Os grilos, apesar de inumeráveis, não podem dar testemunho de nada, nem ir à delegacia dizer nada, nem aos guardas: nem chamar por gente.
A língua das pessoas, sobretudo a das mulheres, mas também a dos caixeiros das vendas lá de baixo, do bairro, e até a de gente muito séria, de outro lugar, dizia que dona Esther andava promovendo...: ou seja: que era muito hospitaleira com os conhecidos: uns sujeitos (quase sempre) muito distintos. O lugar ermo, dizia-se, era propício à hospitalidade. Para cada senhor que se via parado junto ao portão da casinha solitária, esperando o estalo da fechadura elétrica, tinha estado logo depois ou pouco antes uma senhora, no mesmo portão, tal qual mente distinta e na mesma atitude de espera. A meninada já tinha notado.
Outra opinião, em vez disso, era de que as raras visitas, masculinas e femininas, não tinham qualquer ligação entre si. As mulheres eram velhas amigas, uma enfermeira, ou a costureira, ou uma colega de colégio de muitos anos atrás: ou moças que recorriam à dona Esther para um conselho, para saber onde podiam fazer o enxoval mais barato. Os homens, poucos e sérios, também eles eram conhecidos perfeitamente inócuos: o dos impostos, o da luz, o do gás não, que não chega lá em cima: ou o advogado Farri, o médico, um entregador de mantimentos da vila, ou algum mendigo pedindo esmola. Dois ou três eleitos do coração (de antanho), ao que parece, e agora velhos aposentados: aos quais, dizia-se, a velha amiga não tinha coragem de recusar um auxílio para os apertos dos tempos novos e terríveis, um "adiamento", como eles o chamavam, com um sorriso melancólico: nos dias magros do fim do mês, mais frequentemente.
Quando o Cavaleiro Barbetti também precisou recorrer à coragem, como todos nós, e ajuntara os ouros e as jóias de sua querida Irma, a inesquecível companheira de 33 anos de vida (que lhe faltara há um ano exatamente), e daquelas jóias fizera um pacotinho e o enfiou no bolso: com todo o cuidado possível. Mirou-se de novo no espelho, virou-se, torceu o pescoço tentando enxergar-se... de lado, já que atrás não conseguia: alisou os bigodes, despediu-se com um leve rapapé, cheio de decoro e de melancolia: o ensaio geral, talvez, daquele que faria à dona Esther. Pegou a bengala de cana da Índia, do porta-guarda-chuvas, com um belo castão de marfim em forma de escarpim virado. Tinha calçado, um sofrimento de deslocar o lombo!, os sapatos bons de pala de verniz, de orelha de camurça cor de rola: (mas os saltos tinham se nivelado à sola, e por duas fendas transversais, sobre os dedos, olhando bem, entreviam-se as meias). Até com as luvas amarelas ele estava: sim. Estava com tudo.
Depois das vultosas despesas do hospital, dos funerais, do túmulo, a instabilidade não o largara um instante: parecia-lhe ter atrás um demônio que o puxava pelos cabelos, que o puxava para baixo, bem para baixo. De modo que, naquela noite, precisou mesmo recorrer à coragem.
Atravessou a ponte de ferro, que oscilava lentamente, à passagem dos carros: o rio, à noite, sob a ponte, incutia-lhe toda vez uma sensação de temor: como se lhe pudesse acontecer de cair ali, de ser arrastado pela correnteza de um verde lívido, das águas tumultuosas. Atingindo a outra margem, pareceu-lhe ter aportado são e salvo. Tomou o 13. O encontro era para as nove. Nem mesmo tinha comido: só de pensar, perdera o apetite. Tinha um papelucho com o endereço. Releu: avenida Michelangelo, nº 281, a uma centena de passos da parada do bonde. Pediu ao cobrador para descer ali. Dos bons propósitos de dona Esther o Malvezzi não duvidava (fora o amigo a "colocá-los em contato": a comentar com ela o seu caso). A ele, então, falara dela muito bem: dera-lhe, pode-se dizer, o empréstimo por garantido. O coração de uma senhora, de uma mulher: que sabe: que intui. Que compreende. Naturalmente... um desconhecido. Mas, já que era ele que o apresentava! E depois... uma pessoa de bem se conhece pela cara. Cavaleiro: aposentado do Estado. Naturalmente, visto que dona Esther... Uma garantia seria bem-vinda. Naturalmente, naturalmente... Oh, a sua Irma devia perdoá-lo. Nunca imaginaria ter que rebaixar-se a tanto. Quando o bonde parou, só para ele, havia uma última réstia de luz no horizonte distante: as andorinhas tinham todas desaparecido do céu: o morcego, na Villa Guidi, já enguirlandara os arcos e a torre com seu vôo cego, pesado, desgarrado: feito um rato com asas.
Os ciprestes meteram-lhe medo. Os sapatos bons, de verniz e de camurça, estalaram ao longo do caminho. As meias, não, não, não iriam dar na vista... através das duas rachaduras da pala: dona Esther não haveria de botar reparo nisso: estava escuro, quase: era noite. Mas do portão um jovem saiu correndo como numa competição de ginástica: como se quisesse alcançar o bonde que se afastara a galope. Não olhou, não diminuiu a marcha, não disse nada: estava escuro: corria como um atleta, esbarrava numa de suas mangas, ao passar: pois é: mas o rosto virado, na direção do bonde que agora desaparecia numa curva. O cavaleiro Barbetti deu mais alguns passos. O jovem deixara aberto o portãozinho: a porta da casa também estava aberta, a luz acesa, dentro: uma luz velha e fraca de vestíbulo. O cavaleiro Barbetti pediu: dá licença?, dá licença?, com toda distinção. Esperava ouvir perguntarem: quem é?, e preparava-se para responder, um amigo! Nada, ninguém. A solidão imprevista, o silêncio e a imprevista imobilidade dos ciprestes deixaram-no aterrorizado. Apalpou com a mão o seu tesouro, a sua "garantia", no bolso do paletó. Mas onde viera parar, àquela hora? naquela escuridão?... Sentiu que a garantia era justamente o que menos o garantiria... na eventualidade... era uma razão a mais, aliás, a mais que de costume... Imagens assustadoras rodearam-no... Sua velhice indefesa... Sua cana da Índia... com o castão de marfim... Recobrou o ânimo, não podia deixar de fazê-lo depois de toda aquela viagem: superou os dois degraus, tirou o chapéu, e aí pediu: dá licença?, entrou. Um gato desceu as escadas precipitadamente, dardejou através do vestíbulo, sumiu. Quem sabe, talvez dona Esther, como algumas vezes sói acontecer às velhas, fosse surda... Ou talvez tivesse passado mal? O jovem estava correndo atrás do médico?... Mas, e o telefone, então?... O cavaleiro subiu, chegou ao patamar das escadas. A porta de um quarto entreaberta: no quarto... a luz acesa. O cavaleiro sentiu... sentiu... que os ouros e as jóias de sua Irma deviam ser empenhados naquela mesma noite, a qualquer preço... E então... Então aproximou-se: com um rapapé, como aquele que uma hora antes saíra-lhe tão bem, diante do espelho. O chapéu na mão, dessa vez, as luvas amarelas, a cana da Índia segurada pelo castão de marfim, pelo escarpim... Pôs nele, no rapapé, toda a distinção, todo o decoro de uma vida. Levantou a cabeça.
Uma coisa horrenda olhou-o da cama: com dois olhos horrendos, fitava-o, de um jeito que o cavaleiro Barbetti jamais vira em sua vida. Parecia estar prestes a vomitar, a velha: a língua, fora da boca, estava enorme, escura: ele teve a impressão de que dona Esther tinha enlouquecido, possuída por um demônio: e que por maldade daquele demônio que a dominava, lá do íntimo, quisesse insultá-lo e fazer-lhe uma desfeita, a ele, à sua falecida Irma, ao sacrifício de ambos, às jóias do casamento. No pescoço, uma espécie de trapo esfiapado... não entendeu o que era... Bracejou com as mãos, com as luvas, com o chapéu, com a cana da Índia... retirou-se... O terror queria petrificá-lo, gostaria de sair correndo... como o outro... Cri, cri faziam-lhe sob os pés os malditos sapatos, ao descer..., cri, cri, cri...
Muitos meses mais tarde, a polícia conseguiu identificar e prender o assassino. Fizeram todo tipo de conjecturas, as pessoas, inventaram todas que quiseram. Das mais variadas, assustaram. Até aquela, mas qual!, de que dona Esther tinha uma queda pelo rapazola. A polícia não, desde o princípio: conhecem o mundo: com o faro, eles o conhecem: mas são gente séria. A polícia achou que o rapazola devia ter tomado alguns empréstimos, da velha, talvez até sem garantia, isto sim: confidências imprudentes, talvez: por isso ele sabia, ou tinha adivinhado, que naquela noite às nove dona Esther "iria receber um cliente": (no caso o cavaleiro Barbetti): e que, portanto, havia dinheiro em casa. Dinheiro! Dois coelhos numa cajadada: cancelamento dos débitos, dinheiro vivo sem recibo.
No processo, além do cavaleiro Barbetti, mais a cana da Índia e os sapatos de verniz (sobre os quais o procurador do ex-rei deteve-se e dissertou longamente, pois que faziam cri cri, e deduzia-se daí que deveriam ter acordado a senhora, a velha: mas aconteceu que não a despertaram de jeito nenhum), além de tudo isso, no processo, veio à baila uma cordinha: não muito velha, e de qualquer modo "muito resistente à tração", como a perícia técnica não deixou de especificar.

Conto extraído do livro "Casamentos Bem Arranjados" (Nova Alexandria).
Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade.

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